domingo, 17 de junho de 2007

UNIVERSIDADE TRANSGÊNICA: a crise é essa

Jornal da ADUFRJ
Entrevista: Luiz Eduardo R. de Carvalho
Conflitos sobre trangênicos reflete crise da Universidade


Professor do Laboratório de Consumo e Saúde (LabConsS) da Faculdade de Farmácia da UFRJ,
Luiz Eduardo R. de Carvalho aborda a questão dos transgênicos
para esta edição do Jornal da Adufrj, em entrevista concedida por e-mail.
Formado como Engenheiro de Alimentos (pela Unicamp, em 1974),
foi professor do Depto de Agronomia da UnB, e do Instituto de Nutrição da UFRJ.
Está na FF/UFRJ desde agosto de 1989 e foi, por duas vezes,
presidente da Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos (1986-90).
Para Luiz Eduardo, o conflito sobre as vantagens e riscos dos transgênicos no país
retrata a crise da universidade brasileira.
1) Parece que todos já têm uma posição contra ou a favor transgênicos. O senhor é contra ou a favor?
Eu sou a favor, embora todos que me ouvem insistam que falo contra. Mas não vejo como poderia, um professor universitário, ser contra todo e qualquer transgênico. A modificação genética é uma invenção da inteligência humana. É de uma bactéria transgênica, por exemplo, que se extrai a insulina para os diabéticos. O problema é que cada caso é um caso. E o cidadão brasileiro parece não ter nada a ganhar com a soja transgênica. Por que seria a favor?
2) Mas será que o cidadão comum entende de genética, de transgenia, de genoma e pode ter uma opinião sobre assunto cientificamente tão complexo?
Sim, se em vez de definições com terminologia científica, oferecermos exemplos. A partir dos exemplos reais, qualquer pessoa pode perfeitamente entender do que estamos tratando e pode ter uma opinião. Não uma opinião científica; mas uma opinião de consumidor. E isso deve ser também respeitado.
3) Que exemplos seriam esses?
Se dermos apenas exemplos de organismos modificados para produzir remédios, como o da bactéria que produz insulina, claro que quase todos seremos a favor da transgenia. Mas é preciso, por outro lado, lembrar do hormônio transgênico, aplicado nas vacas para produzir mais leite, trazendo risco à saúde das crianças que tomam esse leite; ou do milho Bt, com genes de Bacillus thuringiensis, milho que então produz toxina bacteriana, mortal para insetos; ou dessa soja RR, da Monsanto, que por ser transgênica, e ao contrário do capim que se quer matar, sobrevive ao despejo de herbicidas sobre a lavoura. Ou o exemplo do salmão transgênico, que come exageradamente, e alcança, em um ano, o tamanho de um salmão de 60 meses, como se já não bastasse o monte de porcaria que se usa para fazê-lo ficar artificialmente vermelho, como se não bastasse os aditivos que injetam no presunto, nos frangos, no polvo e no camarão, para que incorporem água, e roubem o consumidor no peso.
4) Como o senhor vê essa disputa entre os favoráveis e os contrários aos transgênicos?
Existe uma guerra midiática, visando conquistar corações e mentes, pró e contra os organismos geneticamente modificados (OGMs). O uso e abuso da semiologia e da lingüística, a serviço das ambigüidades e das meias verdades, são algumas das armas do combate. Só que a arma principal, obviamente, é dinheiro. Estamos tratando mais de palavras que de genes e risco. Palavras tornam-se armas não apenas pelo viés da persuasão cultural e psicológica. Mas também pelo viés jurídico, nas manobras inseridas na regulação oficial. Os pró-OGM dizem que não se deve proibir, mas deixar a decisão para o mercado, para o consumidor. Porém, ao mesmo tempo, negam-se a rotular os produtos. Sem rótulo, como poderá o consumidor exercer seu poder de optar?
5) Podemos rotular os alimentos transgênicos?
Só podemos escrever, no rótulo de um frasco, o nome do conteúdo, se esse conteúdo tiver um nome e esse nome tiver uma definição muito precisa. E isso não existe para OGMs e, menos ainda, para alimentos transgênicos. OGM é uma coisa e comida, alimento transgênico, é outra. Em alguns casos, são sinônimos, mas isso é muito raro. Claro que no caso do salmão transgênico, trata-se de um organismo transgênico que é, ao mesmo tempo, alimento transgênico. O mesmo vale para soja ou milho em grão. Mas não vale para o óleo extraído do milho, ou para a lecitina extraída da soja, que nem são organismos, e sequer contém genes. Óleo, lecitina, enzimas, pigmentos, edulcorantes, vitaminas, hormônios, essas substâncias extraídas dos organismos transgênicos não podem ser rotuladas como OGMs, não são organismos, nem contêm genes convencionais ou modificados. São alimentos; não são organismos.
6) Então é praticamente impossível rotular?
Pelo contrário, rotular é possível e necessário. O problema é definir o que é alimento transgênico. Creio que, para o consumidor, o óleo feito de soja transgênica, e a margarina feita desse óleo, e a empadinha que contém essa margarina, tudo isso deva ser rotulado, informando a origem transgênica, estando ou não, ainda presentes, os genes da soja modificada. É também o caso de todo queijo hoje industrializado no Brasil, que usa quimosina transgênica como coalho, e não informa isso no rótulo. Entendo que rotular não vise alertar sobre risco à saúde, pois dependendo do risco nem deveria estar sendo vendido. Rotular visa orientar o consumidor, e este escolhe sua comida culturalmente, hedonisticamente, financeiramente, ideologicamente. Ninguém compõe seu cardápio diário a partir unicamente do que tem maior ou menor risco sanitário. Não é só de genética ou de nutrição e toxicologia que os transgênicos são feitos. Eles são feitos também de símbolos, de imaginários e atitudes. Comida é isso. E rotular é viável. O que não é viável é vender transgênico rotulado, porque vai ser rejeitado, e porque ficaria exageradamente caro segregar e rotular.
7) A decisão sobre a liberação ou não de transgênicos deve ser técnica ou política?
Todos renegam o termo, e se dizem apoiados na ciência, inclusive o Lula. Mas é óbvio que é uma questão ideológica, que está sendo administrada ideologicamente. Não é preciso saber genética para entender isso do que estamos aqui tratando. Claro que os geneticistas são entusiastas dessa tecnologia. Mas o processo decisório, as atividades reguladoras, as ações de biossegurança, a proteção da saúde do consumidor, e as estratégias comerciais do agronegócio brasileiro, obviamente, são variáveis de outro universos, distantes e distintos da biologia molecular. Assim como a transgenia não é feita por voluntaristas, mas pela inteligência e pelo trabalho, a regulação também exige saberes muito específicos. Os geneticistas brasileiros precisam é se ocupar da invenção transgênica, de fazer o Brasil ser mais competente que a Monsanto, esse é o trabalho deles, e temos que assegurar recursos e liberdade para isso. Mas muitos deles vivem na TV, instrumentalizados como lobistas, dando pitacos ridiculamente furados em nutrição, toxicologia, biossegurança, economia, legislação sanitária, rotulagem, meio ambiente etc.
8) O senhor esteve, semanas atrás, em uma audiência pública no Senado para debater o assunto. Como foi?
No Senado, foi exatamente assim. Um destacado biólogo molecular da USP, agora associado com a Votorantim Ventures para montar uma indústria biotecnológica, não falou nada de biologia molecular, usando todo seu tempo para explicar, não como empresário que agora é, mas como professor que um dia foi, que os transgênicos são a única saída para evitar a fome no mundo. O outro depoente, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), centrou sua fala nos fantásticos medicamentos que a transgenia vai gerar, acabando com as filas de criancinhas doentes e sem cura nas filas dos hospitais públicos. De quebra, argumentou que é claro que os agricultores sempre serão pró-OGM, porque podem ganhar milhões de dólares por hectare, caso plantem soja GM para produzir hormônio do crescimento. E o conferencista, que veio do Hospital do Câncer de São Paulo, optou por denunciar o que chamou de calúnias contra os OGMs, assegurando que a soja GM não vai ter mais resíduos de agrotóxicos que a soja convencional. Só esqueceu que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) está, neste exato momento, por “coincidência”, alterando a legislação, de forma a permitir quantidade 50 vezes maior desse exato herbicida da Monsanto na soja. Assim fica muito difícil debater. Isso não é um debate técnico-científico, não é um diálogo entre cientistas, mas um tribunal, onde todos falam como advogados, defendendo seu cliente em vez de trocar informações, e onde todo argumento pode ser colocado na mesa, ainda que inconsistente, ainda que apenas atrapalhe a compreensão dos fatos.
9) Qual a função da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) nesta história?
A CTNBio é um cartório como tantos outros. Boa parte dos pesquisadores é a favor da CTNBio na expectativa de descolar um carguinho lá e, com isso, como um camelô do Largo da Carioca, ter um ponto comercial privilegiado, para ali fazer contato com o mercado, captando patrocínios e vendendo serviços. Uma agência que decide quais OGMs podem ser liberados ou não, pode e deve convidar professores e cientistas para atuar como consultores, mas não pode delegar o poder decisório a convidados informais. É imperativo que seja uma agência formal, institucionalizada, com pessoal concursado, estabilidade funcional e plano de carreira. E não de gente que vai a Brasília a cada dois meses, para trabalhar de graça, voando de manhã cedinho, para voltar no início da noite, correndo, aproveitando o horário do almoço para dar um pulinho na Capes e no CNPq, com a cabeça mais nestes assuntos, que nos assuntos da CTNBio. Ademais, a CTNBio diz que tem representantes da comunidade científica, mas quem os elege não são os ditos assim “representados”, mas o próprio ministro, sabe-se lá com quais critérios e interesses. Isso é um papo mais longo e tem a ver com o desmanche da maquina pública, com o desmanche do Estado. Quando apóia isso, a Universidade está só dando força para essa máquina que vai desmanchá-la também todinha. Professor pode entender de dar aula de genética, de orientar doutorandos e de publicar trabalho, mas CTNBio e regulação é um outro universo. É outro método para outro objeto. Não pode ser um mero objeto de desejo.
10) Qual a relação deste tema com a Universidade brasileira?
Bem, de certa forma, esse conflito sobre vantagens e riscos dos transgênicos, no Brasil, essa confusão, é também retrato da crise da universidade brasileira. Quem vai patrocinar pesquisas independentes sobre riscos nutricionais e toxicológicos dos transgênicos? A Embrapa, que fabrica OGMs, e mantém um contrato secreto, com a Monsanto, anuncia que o fará no laboratório que está montando em Guaratiba (o CTAA, que é o Centro de Tecnologia Agrícola). Esse centro foi criado para dar apoio à indústria. Não existem centros para dar apoio à proteção para a saúde, ao consumidor e, se a universidade vai sendo empurrada para gerar receita, para prestar serviço às indústrias, aí é que não vamos ter mesmo nenhuma pesquisa nesse campo da saúde. Cabe ressaltar que, muitas das vezes, ao prestar servicinhos laboratoriais, a universidade está apenas sendo cooptada, por alguns trocados, fazendo análises que as multinacionais nem precisam. E os funcionários do Estado acabam fazendo isso por uma ninharia. Basta ver a esfuziante alegria com que departamentos de pediatria, de nossas universidades, respondem a minguadas doações da Nestlé para pequenas obras civis, em prédios degradados pela omissão do governo. Mas dá para confiar na isenção desses pesquisadores? Será mesmo confiável a palavra e os pareceres dos cientistas que viajam para congressos na Europa com dinheiro da Monsanto, como se pode ler nos próprios boletins das empresas?
11) Fale do seu trabalho na UFRJ e sua relação com os transgênicos
Nosso trabalho é principalmente criar conteúdos e linguagens para informar a sociedade sobre consumo e saúde pública. Os atores envolvidos com a “polêmica transgênica” não querem informar, querem convencer, cooptar, e argumentam como advogados, defendendo uma causa, pró ou contra. Nesse jogo, omitem, mentem, confundem. A confusão está aí não por acaso. Ela se dá porque a figura de uma universidade pública e socialmente orientada está fragilizada.O LabConsS – Laboratório de Consumo e Saúde, da Faculdade de Farmácia da UFRJ, realiza um trabalho muito modesto, mais de treinamento e capacitação de recursos humanos do que propriamente de pesquisas científicas ou defesa do consumidor. Mesmo assim, mesmo modesto, é um trabalho de enorme destaque no cenário brasileiro, com repercussão internacional. Isso não é motivo de satisfação, mas de preocupação. Se alcançamos tal sucesso, sendo tão pequenos, é porque esse setor está realmente abandonado pelo Estado. Aproveito para convidar que visitem o site em www.ufrj.br/consumo. Bolsistas do PET/SESu respondem perguntas de consumidores, e produzem clippings diários de notícias, sobre transgênicos, medicamentos, vigilância sanitária, consumerismo, dietéticos etc. Interações e parcerias com outros setores da UFRJ seriam bem vindas.

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